“Acordo Ortográfico: para além de Portugal * (continuação)
“(…) Parece, além disso, que a indústria cultural portuguesa, com a vigência do Acordo, enfrenta dois problemas — e isto talvez explique algumas resistências e não poucos protestos. Um desses problemas chama-se mercado africano, um mercado até agora “blindado” pelo uso da grafia portuguesa e fechado à variante brasileira do Português. O outro problema vem do poder económico das editoras brasileiras, aparentemente ameaçadoras para a indústria editorial portuguesa. É isto que me dizem, porque, por mim, não vejo as coisas assim. Pelo contrário: acho que as editoras portuguesas têm argumentos para fixar ou (se for o caso) reconquistar o mercado africano; e penso que uma grafia comum (excepções à parte) a todos os países de língua oficial portuguesa, abrirá um mercado muito amplo para a edição portuguesa, com destaque para o gigantesco mercado brasileiro.
(…)
Há memória de alguma biblioteca ter sido destruída quando o Acordo de 1945 entrou em vigor em Portugal? Alguém inutilizou algum livro quando passou a escrever “aflito” em vez de “aflicto”, “quer” em vez de “quere”? E foi impossível fazer conviver por algum tempo as grafias “mãi” e “mãe”?
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Ouço dizer: o Inglês não tem acordo ortográfico e passa muito bem sem ele. Omite-se aqui que as oscilações ortográficas em Inglês (que, aliás, estão dicionarizadas) são muito reduzidas e também que, nele, a relação entre grafia e pronúncia é muito mais convencionada do que em Português; e falta aprofundar um pouco a questão, para chegarmos a uma resposta óbvia: o Inglês não tem acordo ortográfico, porque simplesmente não precisa dele. E não precisa porque o seu esmagador poder linguístico é sobretudo um efeito de outros poderes que arrastam e praticamente impõem aquele poder linguístico: o poder político, o poder económico, o poder tecnológico, o poder cultural, etc. Numa palavra: o poder.
No caso do Espanhol importa ir um pouco mais longe e lembrar que a emancipação política da América Latina de colonização espanhola conduziu à fragmentação em cerca de uma vintena de países. Isso permitiu a sobrevivência de Espanha como uma espécie de “metrópole” europeia com um certo ascendente no plano linguístico; um ascendente que se reforça pelo labor de uma vigorosa política de difusão da língua, com a qual Portugal muito tem a aprender. Nessa política de língua intervém a Real Academia Española, sendo inequívoco que esta última tem, no universo da Língua Espanhola, um prestígio normativo considerável: tenha-se em vista a capacidade de determinação e também de incorporação lexical que o Diccionario de la Lengua Española possui, no vasto universo que cobre; uma capacidade de determinação que, evidentemente, vale por um amplo, tácito e respeitado acordo linguístico. Acresce a isto que, nos nossos dias, a Espanha é também uma potência económica, o que ajuda a fazer do Espanhol (e já não apenas naquele vasto espaço post-colonial, note-se) uma espécie de “inglês latino”.
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Termino. Torna-se absolutamente necessário que a questão do Acordo Ortográfico seja equacionada não apenas de dentro para dentro (como alguns fazem em Portugal), mas sobretudo de dentro para fora. Ou seja: pensando o Português em função de um mundo mais amplo do que o país que lhe deu origem. E sendo assim, que a questão seja vista também como um desígnio colectivo e não reduzida à estreita defesa de interesses particulares ou à expressão de sensibilidades irritadas. O que está em causa é um acordo estratégico, não uma unificação linguística absoluta, do mesmo modo que pensar uma língua sem regulação é convidar à sua rápida fragmentação. Seguramente, não é isso que queremos.”
* Excertos da Comunicação lida na Audição Parlamentar sobre o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, promovida pela Comissão de Ética, Sociedade e Cultura da Assembleia da Republica, em Lisboa, no dia 7 de Abril de 2008.
Carlos Reis (Angra do Heroísmo, 28 /09/1950)
Ensaísta, colaborador de jornais e revistas, professor universitário, especialista em literatura portuguesa.