Archive for Dezembro, 2017

Olga Gonçalves – [Festejar…]
Dezembro 7, 2017

 

festejar no teu corpo a liberdade
que a dobra desta noite pronuncia
sobre o nervo da voz força de alarme
garganta milimétrica de abril

um cravo da coronha de um soldado
no carmo há meia hora ainda em sentido
para o gesto tão fundo tão volável
infância já da luz dentro do sismo

jornais não censurados no tapete
uma fábula fértil de fogueiras
crepitando onde rola o som da estampa

interior ao rumo a labareda
o desenho final do nosso beijo
na premissa mais livre do meu sangue

 

Olga Gonçalves (Luanda, 1929 – Lisboa 3/4/2004)
Poetisa, romancista, contista, tradutora, professora de Inglês.

Literatura Africana de Expressão Portuguesa, Cabo Verde – Ovídio Martins – Terra dos Meus Amores
Dezembro 7, 2017

 

Terra dos meus amores

Ó terra da minha dor

Chora o vento na tua voz

O mar ameaça nos teus gestos

 

No fundo dos séculos sobe o rumor

De idade concreta – 500 anos

Do fundo dos séculos chora o vento

Na voz da terra – meu amor

 

O mar ameaça nos teus gestos

Ó terra da minha dor

Bloqueio mordaça bloqueio

Terra dos meus amores

 

Soluça o vento na tua voz

Ameaça o mar nos teus gestos

Bloqueio mordaça bloqueio

Na tua face de rompido espanto

 

Agora a luta ontem o desespero e dantes as lágrimas

Ó terra da mina dor

Estrela salgada de 10 braços

E em cada braço mil esperanças

 

Ovídio Martins (São Vicente 17/9/1928 – Lisboa, 29/04/1999)
Poeta e jornalista, cofundador do Suplemento Cultural.

Padre António Vieira – Amor e Tempo
Dezembro 7, 2017

 

Tudo cura o tempo, tudo faz esquecer, tudo gasta, tudo digere, tudo acaba. Atreve-se o tempo a colunas de mármore, quanto mais a corações de cera!

São as afeições como as vidas, que não há mais certo sinal de haverem de durar pouco, que terem durado muito.

São como as linhas, que partem do centro para a circunferência, que quanto mais continuadas, tanto menos unidas.

Por isso os antigos sabiamente pintaram o amor menino; porque não há amor tão robusto que chegue a ser velho.

De todos os instrumentos com que o armou a natureza, o desarma o tempo.

Afrouxa-lhe o arco, com que já não atira; embota-lhe as setas, com que já não fere; abre-lhe os olhos, com que vê o que não via; e faz-lhe crescer as asas, com que voa e foge.

A razão natural de toda esta diferença é porque o tempo tira a novidade às coisas, descobre-lhe os defeitos, enfastia-lhe o gosto, e basta que sejam usadas para não serem as mesmas.

Gasta-se o ferro com o uso, quanto mais o amor?!

O mesmo amar é causa de não amar e o ter amado muito, de amar menos.

 

Padre António Vieira (Lisboa, 6/2/1608 – Bahia, 18/7/1697)
(“Paiaçu”)
Religioso, Prosador e pensador, orador do séc. XVII.

Paulo Eduardo Campos – Parte Comigo
Dezembro 7, 2017

 

Parte comigo,

Para uma praça vazia

Que acorda antes da cidade,

Onde as estrelas

Se entrelaçam nos nossos dedos.

Parte comigo,

Sentir o sol beijar-nos a pele,

Sentir que o nosso tempo

Existe para além do tempo todo

Onde nos perdemos continuamente.

Parte comigo,

Onde não posso encontrar mais

Que o teu rosto, que o teu sorriso,

Que o teu nome murmurado letra a letra,

Pétala a pétala.

Parte comigo,

Onde a noite adormece nos teus braços,

Onde nos misturamos como brisas e beijos,

Na praia onde as ondas nos imitam.

Parte comigo,

Até onde nos leve o último raio de sol do dia

 

CAMPOS, Paulo Eduardo, Na Serenidade dos rios que enlouquecem

 

Paulo Eduardo Campos (Lisboa, 1975)
Poeta, colaborador em diversas publicações.

Paulo Teixeira – Os Amantes de Pompeia
Dezembro 7, 2017

 

Eles conheceram-se neste abraço
em que levam tanto tempo,
embalados na cadência,de uma canção desconhecida
e no mover das mãos que hesitam
entre o animal e a planta.

O tempo privou-os de vida
mas não um do outro, tangíveis
nos membros onde o desejo

lateja ainda,
gestos como medusas esvaindo-se
no sangue em que se fundiram para sempre.

Geraram esta outra placenta
com a urgência de quem sabe
que bebe em cada trago despedida:

lenta colheita da alma
que palidamente assoma
em cada poro,

subtil, alada, como pluma
que sem ser vista
se solta.

Neste abraço que os reteve até à sufocação,
depois que se abateram o céu e o horizonte,
o mundo foi-lhes langor

e memória acesa;
petrificados, mortos,
estão diante do nosso olhar,

na posição aflita em que os une,
mais que o esterno e a pelve,
o duplo receio da imortalidade.

TEIXEIRA, Paulo, Orbe

Paulo Teixeira (Lourenço Marques, atual Maputo, 1962)
Poeta, professor do Ensino Secundário, licenciado em Geografia e Planeamento Regional.

Ramalho Ortigão – As Farpas II, Dedicatória
Dezembro 7, 2017

 

” À Saudosa Memória
do
CONDE DE ARNOSO

– heróica personificação da amizade,
espelho de fidalgos e de homens de
bem, modelo de honra, de valor, de
coerência e de fidelidade, lição dos seus
contemporâneos, glória da sua raça –

piedosamente consagra as seguintes pá-
ginas, sobre algumas das quais esvoaça
melancólico e benigno o derradeiro sor-
riso de companheiro, de camarada e de
amigo.

Ramalho Ortigão.”

 

Ramalho Ortigão (Porto, 24/10/1836 – Lisboa, 27/9/1915)
Escritor, professor de Francês – de Eça e Ricardo Jorge -,jornalista e bibliotecário.

Rachel de Queiroz – A Velha Amiga – Crónica, Excertos
Dezembro 7, 2017

 

Conversávamos sobre saudade. E de repente me apercebi de que não tenho saudade de nada. Isso independente de qualquer recordação de felicidade ou de tristeza, de tempo mais feliz, menos feliz. Saudade de nada. Nem da infância querida, nem sequer das borboletas azuis, Casimiro.
(…)

Queria ter palavras boas, eficientes, para explicar como é isso de não ter saudades; fazer sentir que estou exprimindo um sentimento real, a humilde, a nua verdade. Você insinua a suspeita de que talvez seja isso uma atitude.

Meu Deus, acha-me capaz de atitudes, pensa que eu me rebaixaria a isso? Pois então eu lhe digo que essa capacidade de morrer de saudades, creio que ela só afeta a quem não cresceu direito (…)

Fala que saudade é sensação de perda. Pois é. E eu lhe digo que, pessoalmente, não sinto que perdi nada. Gastei, gastei tempo, emoções, corpo e alma. E gastar não é perder, é usar até consumir.

E não pense que estou a lhe sugerir tragédias. Tirando a média, não tive quinhão por demais pior que o dos outros. Houve muito pedaço duro, mas a vida é assim mesmo, a uns traz os seus golpes mais cedo e a outros mais tarde; no fim, iguala a todos.

(…)

Não sei mesmo como, entre as inúmeras mentiras do mundo, se consegue manter essa mentira maior de todas: a suposta felicidade dos moços. Por mim, sempre tive pena deles, da sua angústia e do seu desamparo. Enquanto esta idade a que chegamos, você e eu, é o tempo da estabilidade e das batalhas ganhas. Já pouco se exige, já pouco se espera. E mesmo quando se exige muito, só se espera o possível. Se as surpresas são poucas, poucos também os desenganos.

A gente vai se aferrando a hábitos, a pessoas e objetos. Ai, um um dos piores tormentos dos jovens é justamente o desapego das coisas, essa instabilidade do querer, a sede do que é novo, o tédio do possuído.

E depois há o capítulo da morte, sempre presente em todas as idades. Com a diferença de que a morte é a amante dos moços e a companheira dos velhos.

Para os jovens ela é abismo e paixão. Para nós, foi se tornando pouco a pouco uma velha amiga, a se anunciar devagarinho: o cabelo branco, a preguiça, a ruga no rosto, a vista fraca, os achaques. Velha amiga que vem de viagem e de cada porto nos manda um postal, para indicar que já embarcou.”

In Crónica publicada no jornal O Estado de São Paulo   (13/01/2001)

 

Rachel de Queiroz (Fortaleza, 17/11/1910 – Rio de Janeiro, 4/11/2003)
Romancista, poetisa, cronista, dramaturga, escritora de literature infanto-juvenil, jornalista, tradutora.
Foi a 1.ª mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras.
Distinguida com o Prémio Camões em 1993.

Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, Angola – Pepetela e o Regresso à Terra Natal
Dezembro 7, 2017

 

“Quando regresso a Benguela, tenho sempre a sensação de reentrar no ventre materno. Começa pelo ar. Cada terra tem o seu ar, com consistência própria e sobretudo cheiros particulares. Sinto isso ao chegar, sendo mais acentuado se a viagem é feita de avião, em que não há etapas de transição para adaptação dos sentidos às mudanças… Depois há a cidade e as gentes.”

 

 

Pepetela (Benguela, 29/10/1941)
Pseudónimo de Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos .
Escritor, distinguido com o Prémio Camões em 1997.
Guerrilheiro do MPLA, político, governante, professor universitário, licenciado em Sociologia.

Pedro Tamen – Os Dias
Dezembro 7, 2017

 

Naquele tempo, viver era a melhor coisa do mundo.

Quando nascia o sol as pessoas viam

e os homens eram crianças para além dos montes.

Era uma planície, grande como convém a todas as

planícies

E plana porque tudo estava certo.

Naquele tempo tínhamos sido criados e éramos iguais às

ervas e às flores.

Tu,

tão perfeita que impossível não seres,

tão erguida como um riso de andorinha,

tu estavas ao meu lado, naturalmente fresca,

e não havia motivos nem razões porque sabíamos

tudo.

A nossa teologia era o beijo da criança mais próxima

e o deitarmo-nos na terra como folhas da mesma

planta,

gratos, reduzidos, conscientes.

Olhando para cima, o céu abria-se e todos os Anjos

vinham sentar-se no rebordo

e riam como nós pequenas gargalhadas.

Eu cantava canções mais belas do que não tendo

palavras

e ouvias-me em silêncio e de olhos abertos,

exatamente como a todos os sons.

 

TAMEN, Pedro, Princípio de Sol

 

Pedro Tamen (Lisboa, 1934)
Poeta, crítico literário, tradutor, professor, licenciado em Direito.

 

Pedra da Silveira – Ilha
Dezembro 7, 2017

 

Só isto:
O céu fechado, uma ganhoa
pairando. Mar. E um barco na distância:
olhos de fome a adivinhar-lhe, à proa,
Califórnias perdidas de abundância.

 

SILVEIRA, Pedro da, A Ilha e o Mundo (1952)

 

Pedro Laureano Mendonça da Silveira (Açores, Fajã Grande, 05/09/1922 – Lisboa, 13/04/2003)
Poeta, ensaísta, tradutor, investigador, colaborador em periódicos e revistas, nomeadamente a Seara Nova, onde integrou o conselho de redação, a Colóquio de Letras e a Vértice, participou também na comissão de gestão da Biblioteca Nacional de Lisboa, na qual foi diretor dos Serviços de Investigação e de Atividades Culturais, divulgou n´A Ilha, jornal micaelense, o movimento literário de Cabo Verde, através da revista Claridade.