Archive for Dezembro, 2016

Lília Tavares – [É de Brumas]
Dezembro 7, 2016

É de brumas

que as manhãs se cobrem

antes que o sol aqueça

este vazio.

O orvalho pousa-me

pesado no corpo.

Sei que me podias

soprar estas gotas

e desnudar-me no inverno

como em pleno estio.

 

In Rio de Doze Águas

Lília Tavares (Sines, 09/03/1961)
Poetisa, criadora e coautora da Página do Facebook: <em>Quem lê Sophia de Mello Breyner Andresen</em>, psicóloga clínica.

José Gabriel Duarte – O Beijo
Dezembro 7, 2016

O beijo de amor, não tem cor,

é transparente,

e quando acaba deixa sempre um rasto,

um calor,

um doce sabor,

a quem o sente.

 

In Rio de Doze Águas

 

José Gabriel Duarte (Lisboa)
Poeta, estudou a vida e a obra de J.S. Bach, licenciado em engenharia informática, ex-oficial da Armada.

Adolfo Casais Monteiro – Vem, Vento, Varre
Dezembro 4, 2016

Adolfo Casais Monteiro

A José Rodrigues Miguéis

Vem, vento, varre
sonhos e mortos.
Vem vento, varre
medos e culpas.
Quer seja dia,
quer faça treva,
varre sem pena,
leva adiante
paz e sossego,
leva contigo
nocturnas preces,
presságios fúnebres,
pávidos rostos
só covardia.

Que fique apenas
erecto e duro
o tronco estreme
de raiz funda.

Leva a doçura,
se for preciso:
ao canto fundo
basta o que basta.

Vem vento, varre!

Adolfo Casais Monteiro (Porto, 4/7/1908- S. Paulo, 23/07/1972)
Poeta, ensaísta, professor universitário, licenciado e, Ciências Histórico-Filosóficas, esposo de Alice Pereira Gomes.

Maria Alzira Seixo – Segurar a Vida (Continuação)
Dezembro 3, 2016

Maria Alzira Seixo

“(…) As compensações vinham do lado internacional: aos 50 anos fui indigitada para presidente da Associação de Literatura Comparada, sendo eleita em Tóquio, numa experiência rica e gratificante. Com a alegria de nunca me ter candidatado a nada, nos cargos internacionais que desempenhei, sempre vindos por convite ou proposta exterior. Como também nunca viajei sem ser em trabalho (parece que a padroeira da Moita me fadou naquele ciclone), com especial carinho pelas estadias no Cabo da Boa Esperança, quando cumpri os dez anos do Seminário de Literatura de Viagens, em 2000.

A viagem de lazer só veio na doçura da reforma: eu fora convidada para a Universidade de Chicago, apaixonei-me pelas esbeltas torres à beira das águas (as quais, por meandros vários, vêm afinal aqui ter à Costa Vicentina, digo-o no Diário do Lago) e para lá passei a deslocar-me anualmente, a assistir aos últimos nevões e a ver chegar a primavera.

E quando às vezes ponho diante dos olhos os muitos trabalhos que por mim passaram, a pobre de mim espanta-se do torvelinho de coisas vividas (…).

Mas é doce considerar agora tudo isto e, como Fernão, ir voltando à Margem Esquerda, e escrever. Porque a reforma não é abandono de trabalho, é o direito que temos a fazê-lo enfim folgadamente, sem pressas aturdidas, com gosto. A sentir o tempo que passa e a frui-lo. A segurar a vida, que não se deixa prender, mas se sente em concreto na mão que escreve ou toca, saboreando a respiração. (…)”

SEIXO, Maria Alzira, “autobiografia”, in JL, 24 de Outubro – 6 Novembro 2007

Maria Alzira Seixo (Barreiro, 29/4/1941)
Ensaísta, crítica literária, poetisa, professora catedrática (jubilada).

Ana Goês – Jogos com a Língua Portuguesa (continuação)
Dezembro 2, 2016

As Vogais

Pares de “frases homófonas”…

 

“Quando ela dispara, eu fujo!
Quando ela diz “pára”, eu fujo…”

 

“À direita e à esquerda!
Há direita e há esquerda…”

 

“Admissão do ministro, já!
A demissão do ministro, já!”

 

“E leito assim, quer me dera!
Eleito assim, quem me dera!”

 

“Não podes espiar!
Não podes piar!”

 

“Nem a sul o são, sequer…
Nem a solução se quer…”

 

“Se gostas do povo sérvio…
Se gostas do povo, serve-o!”

 

“Situação: Estremadura.
Situação extrema, dura...”

 

GOÊS, Ana, Aliás Voltas Sempre / Ali às Voltas Sempre

 

Ana Goês, Carnaxide, 1936
Poetisa e prosadora.

Mário Cláudio – “Le Petit Tour”, Breve Excerto
Dezembro 2, 2016

Mário Cláudio

“(…) Na proximidade do fecho dos meus estudos secundários, e portanto ao acaso da adolescência, meus tios oferecer-me-iam um “petit tour” eletrizante, posto ao pé da porta.

Os ganapos da minha geração saíam raramente do país, o que se devia a uma mescla de condicionantes, impostas pela magreza da bolsa, o confinamento político, e até a inscrição do território na periferia da Europa. Daí que fatalmente se nos abrisse, e à falta de melhor, a ascensão a Vigo, ou a esticada a Badajoz, em demanda dos caramelos, dos artigos de perfumaria, e em certa fase, pasme quem quiser, do próprio bacalhau.

Daquela feita porém rasgar-se-me-iam horizontes bem mais vastos, as capitosas cidades de Andaluzia, e a quase inconcebível jornada a Tânger.

Lá fomos pois, e regressámos, e jamais encontraria eu ao longo das andanças inúmeras por este mundo (…) ulteriormente efectuadas, mais excitante viagem de férias, ou mais formativa. (…)

Será necessário acrescentar que o puto voltaria aos lares com o sabor das tâmaras, mais intenso do que qualquer outro, e em simultâneo sedoso e áspero, nos lábios, no palato, e na alma?”

 

In JL, 17 a 30 de agosto de 2016

 

Mário Cláudio, pseudónimo de Rui Manuel Pinto Barbot Costa (Porto, 6/11/1941)
Ficcionista, poeta, dramaturgo, ensaísta, tradutor, licenciado em Direito e diplomado em Bibliotecária-Arquivística.

 

 

Luís Filipe Castro Mendes – Romance de Dona Cleonice Berardinelli
Dezembro 2, 2016

cleonice-berradinelli-e-luis-filipe-castro-mendes

De Cleonice, senhora

em seu saber assentada,

venho dizer sem demora

seu louvor: seja louvado

por quanto de si nos deu

com o tranquilo fulgor

de tudo o que mereceu.

Esta só prova de amor

à língua e às suas artes

deu-nos a todos a flor

portuguesa em todas partes:

dos sertões e das veredas,

do verso mais fingidor,

de Camões até às sedas

da índia e mais em redor;

do caminho e mais da pedra,

da faca gume sem dor,

da concha donde não medra

Vénus, mas seu esplendor.

E são alusões marinhas

e são caminhos imensos,

língua tua quando minha

nos percursos mais intensos:

o que se diz literatura,

o que poesia se chama

em tão profunda cultura

tru viver luz e proclama.

Nós passeámos por Praga,

por seus becos e travessas,

numa insaciável saga

de viagens e conversas,

que prolongavam a maga

fascinação com diversas

leituras e descobertas

de uma vida que no Rio

tinha as janelas abertas

para o mundo e pra seu fio

de linhas longas e certas

em que a língua se redoura,

com orgulho em sua oferta.

Pois Cleonice, senhora,

do saber sempre vivido

numa língua que aflora

em povos, versos, sentidos

viveres que aqui se mistura,

no riso sempre entendido,

aqui deixo a homenagem

do amigo comedido,

que sem fazer a viagem

deixa o seu preito sentido.

 

In JL de 31 de agosto a 13 de setembro de 2016

 

Luís Filipe Castro Mendes (Idanha-a-Nova, 1950)
Poeta, ficcionista, diplomata, licenciado em Direito.

 

Cleonice Seroa da Mota Berardinelli (Rio de Janeiro, 28 /08/1916)
Professora universitária de Literatura Portuguesa, investigadora e ensaísta, especialista em Luís de Camões, Gil Vicente e Fernando Pessoa, autora de antologias poéticas e de vastos trabalhos sobre escritores portugueses e outras personalidades.
Comendadora da Ordem do Infante D. Henrique de Portugal (1966) e da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada (1987) e distinguida com a Grã-Cruz da mesma Ordem de Portugal (2006).
Ocupa a cadeira número 8 na Academia Brasileira de Letras desde 16 de dezembro de 2009.

 

Na foto: A professora e o poeta, atual Ministro da Cultura, quando era cônsul no Rio de Janeiro.

Maria Assunção Vilhena – Em Sines, “A Banhos” (Continuação)
Dezembro 2, 2016

Maria Assunção Vilhena

” (…) Duas ou três voltas à manivela, o motor a roncar, um último aviso à miudagem para que se sentassem no estrado da carroçaria e não se levantassem com viatura em andamento e “ala que se faz tarde…”

Algumas paragens breves apenas para colhermos alguns figos das muitas figueiras que bordavam a estrada (algumas ainda lá estão) e acenadas para o fogareiro a carvão (cascos e marvalha), uma hora depois já estávamos a descarregar os tarecos.

Era na Rua de Ferreira a que chamávamos Estrada de Santiago, numa casita do Chico Ferrador, que além da oficina de ferrador com tronco para ferrar bois, tinha cavalariça para recolha de animais que pagavam a argola, espaço para estacionamento de carros e casas para alugar a banhistas. Na frente morava a senhora Chica Laranjinha e duas senhoras que costuravam para fora, e que também alugavam quartos no Verão.

A nossa “casa de férias” compunha-se de três minúsculos assoalhadas, sem água, sem esgotos, sem luz, quase sem ar…

Do lado da rua, ficava o quarto dos pais (o único que tinha janela) e a sala da entrada que era, ao mesmo tempo, sala de refeições e de visitas e, à noite, quarto do Chico, iluminada pela porta ou pelo postigo, quando ela estava fechada.

Do lado do quintal, com o qual não comunicava, nem sequer por uma fresta, estava o quarto das raparigas, bastante escuro e a cozinha, iluminada por uma telha de vidro e arejada pelas telhas soltas e pela chaminé. Essa luz e esse ar compartilhava-os a cozinha com o nosso quarto, pela porta que tinha de se manter aberta…

Era na cozinha que se empilhavam os víveres, o carvão, os cestos, os caixotes que também serviam de bancos. Aí se grelhava ou fritava o peixe, alimento principal naquela altura do ano e naquela terra, enchendo o ambiente de fumo, que picava os olhos, e de cheiros desagradáveis, que impregnavam a roupa, os móveis, as paredes…

O resto da casa era um buraco escuro, entre a cozinha e o nosso quarto, sem ventilação, onde uma panela de barro servia de sanitário.  Em Sines também havia a imunda carroça de despejos. (…)

No dia seguinte ao da nossa chegada, o meu pai apareceu com uma rede de pesca castanha; com a minha mãe, aproveitaram a parte melhor e suspenderam-na na porta exterior, à laia de reposteiro, para evitar que as moscas entrassem. Todas as casas modestas estavam assim protegidas dos enxames que infestavam a vila. (…)”

(continua)

VILHENA, M. Assunção, Gente do Monte

 

Maria Assunção Vilhena (Santiago de Cacém)
Concluiu o Curso de Professora do Ensino Primário em 1948, posteriormente licenciou-se em Filologia Românica e lecionou Francês na sua terra natal.
Dedicou-se ao estudo da Etnologia da Beira-Baixa e editou obras neste âmbito.