” (…) Duas ou três voltas à manivela, o motor a roncar, um último aviso à miudagem para que se sentassem no estrado da carroçaria e não se levantassem com viatura em andamento e “ala que se faz tarde…”
Algumas paragens breves apenas para colhermos alguns figos das muitas figueiras que bordavam a estrada (algumas ainda lá estão) e acenadas para o fogareiro a carvão (cascos e marvalha), uma hora depois já estávamos a descarregar os tarecos.
Era na Rua de Ferreira a que chamávamos Estrada de Santiago, numa casita do Chico Ferrador, que além da oficina de ferrador com tronco para ferrar bois, tinha cavalariça para recolha de animais que pagavam a argola, espaço para estacionamento de carros e casas para alugar a banhistas. Na frente morava a senhora Chica Laranjinha e duas senhoras que costuravam para fora, e que também alugavam quartos no Verão.
A nossa “casa de férias” compunha-se de três minúsculos assoalhadas, sem água, sem esgotos, sem luz, quase sem ar…
Do lado da rua, ficava o quarto dos pais (o único que tinha janela) e a sala da entrada que era, ao mesmo tempo, sala de refeições e de visitas e, à noite, quarto do Chico, iluminada pela porta ou pelo postigo, quando ela estava fechada.
Do lado do quintal, com o qual não comunicava, nem sequer por uma fresta, estava o quarto das raparigas, bastante escuro e a cozinha, iluminada por uma telha de vidro e arejada pelas telhas soltas e pela chaminé. Essa luz e esse ar compartilhava-os a cozinha com o nosso quarto, pela porta que tinha de se manter aberta…
Era na cozinha que se empilhavam os víveres, o carvão, os cestos, os caixotes que também serviam de bancos. Aí se grelhava ou fritava o peixe, alimento principal naquela altura do ano e naquela terra, enchendo o ambiente de fumo, que picava os olhos, e de cheiros desagradáveis, que impregnavam a roupa, os móveis, as paredes…
O resto da casa era um buraco escuro, entre a cozinha e o nosso quarto, sem ventilação, onde uma panela de barro servia de sanitário. Em Sines também havia a imunda carroça de despejos. (…)
No dia seguinte ao da nossa chegada, o meu pai apareceu com uma rede de pesca castanha; com a minha mãe, aproveitaram a parte melhor e suspenderam-na na porta exterior, à laia de reposteiro, para evitar que as moscas entrassem. Todas as casas modestas estavam assim protegidas dos enxames que infestavam a vila. (…)”
(continua)
VILHENA, M. Assunção, Gente do Monte
Maria Assunção Vilhena (Santiago de Cacém)
Concluiu o Curso de Professora do Ensino Primário em 1948, posteriormente licenciou-se em Filologia Românica e lecionou Francês na sua terra natal.
Dedicou-se ao estudo da Etnologia da Beira-Baixa e editou obras neste âmbito.